quarta-feira, 15 de agosto de 2012

A Caixa

      Era o mesmo vagão, no mesmo horário, no mesmo trem, de várias origens para vários destinos. E tudo isso chegava na plataforma. Pessoas vem e vão na loucura da rotina dos adultos. O olhar deles é vago, superficial, de casca. É um tal de encara daqui, encara de lá, mas ninguém pára pra se olhar de verdade. 
      Esse garoto olhava, não deixava escapar um detalhe. Se incomodava um pouco com os olhares que
 recebia durante o dia. Ainda não sabia como lê-los, mas sentia que em cada um vinha acompanhado de uma martelada da realidade sobre o que era ser diferente. Ele não podia correr ou pular. Suas pernas estavam lá, mas dois pares de rodas é que cumpriam a nobre tarefa de alazão, a de carregá-lo por aí. Sua mãe sempre a acompanhá-lo, como piloto de sua cadeira, sempre que ele estivesse disposto a dar uma volta.
      Estava tendo uma apresentação de música clássica lá na estação. Ele estava vidrado, e o violoncelista tinha uma atenção especial do garoto. Como era possível um instrumento tão grande e robusto como aquele entrar em harmonia com o som de um instrumento como o violino, tão pequeno e delicado, talhado às carícias? Música era sem dúvida sua maior distração. Há duas semanas, quando completou 12 anos, ganhou algumas coletâneas de música clássica de presente. Passava horas imaginando cenários e histórias grandiosas para clássicos sinfônicos. Sonhava as vezes que era maestro e que, sem se mover um passo do lugar, comandava e possuia o som de cada corda, cada nota, cada vibração na ponta de uma batuta.
      Assim que acabou o pequeno show, mãe e filho seguiram seu trajeto. Desceram para a plataforma onde embarcaram em um vagão relativamente vazio para aquele horário do dia. O trem entra em movimento em direção a próxima estação.
      Quem o aguardava era um homem, que pelo comprimento da barba, logo se notava a idade avançada, usava óculos escuros arredondados de astes finas, era um tanto alto, de aspecto desajeitado, usava um chapéu que não combinava nada com o blazer gasto por cima de uma regata branca, seus sapatos eram sujos e estavam com as solas pra descolar a qualquer momento. Arrastava uma enorme caixa de madeira, revestida em couro, com diversos adesivos, uma especie de baú de recordações. Arrastou sua posse gigante para dentro do vagão atraindo todos os olhares. Escolheu um lugar, parecia decidido mas, no que pareceu ser uma súbita mudança de idéia, voltou-se para o lado oposto e sentou-se de frente para o garoto.
      Não se sabia se eles estavam realmente se entreolhando, os óculos escuros do velho davam a sensação de que ele estava sempre com o olhar fixo em alguém. A mãe do garoto sequer havia notado a entrada de alguém no vagão desde que caiu no sono a duas estações atrás. As luzes na janela e o balanço leve do metrô podem ser realmente hipnotizantes. E na verdade, depois que o velho entrou no vagão, a sensação do garoto era a de que tudo havia se tornava alheio, distante perante a presença dele, era como estar sonhando.
      -Nós somos muito parecidos, sabe? Eu e você. – disse o velho sem avisar, com a naturalidade que só um amigo íntimo teria.
      O garoto se espantou.
      - Você está falando comigo? – perguntou, assustado.
      - Você vê mais alguém que se pareça comigo por aqui? – retrucou, como se a resposta fosse óbvia, mas sempre com tom gentil.
      O pequeno estava confuso. Qual semelhança o velho via entre os dois? O velho era alto e devia ter umas quatro vezes a sua idade. O garoto não via o mundo de uma altura maior que 1,5m desde que se lembra de ter sentado na cadeira pela primeira vez. E pensou em várias outras comparações que o fizeram responder:
      - Mas nós não somos parecidos em nada.
      O velho fez ar de que já esperava por essa resposta. Deu uma leve tossida, limpando a garganta, como se estivesse se preparando para fazer uma citação, fez pose de poeta e disse:
      - O som de um violoncelo é diferente do de um violino, mas juntos têm uma harmonia perfeita. Você nunca pensou nisso? – retrucou sorrindo, como se soubesse de um segredo.
      O garoto sorriu de volta. Já havia pensado nisso naquele pequeno concerto da estação. Logo lembrou da sensação única que aqueles dois instrumentos o causaram. E era verdade, não se sabe o som que um instrumento faz até ouvi-lo. O garoto começou a despertar mais curiosidade sobre o que o velho tinha a lhe dizer, a partir daí.
      - Eu pensei exatamente isso a uns minutos atrás. Como você sabe disso? – perguntou, impressionado.
      - É simples, eu consigo olhar além da sua caixa. – disse o velho como se já tivesse explicado tudo.
      - Mas que caixa? – o garoto olhou ao seu redor, só achou sua mãe num sono profundo e uma sacola com revistas que ela havia comprado.
      - Esta caixa. – instruiu o velho. E apontou para baixo, na direção a sua cadeira de rodas.
O garoto pareceu não entender.
      - O quê? Mas isto é uma cadeira de rodas. - disse.
      - Bom, vou te fazer algumas perguntas e vou te convencer de que isso é uma caixa, igaulzinha a minha, tudo bem? – desafiou o velho.
      O garoto afirmou com a cabeça, aceitando.
      - Vamos lá. Essa cadeira é algo que você precisa levar pra todo lugar? – começou o velho.
      - Uhum. – afirmou o garoto.
      - Quando você anda com ela, você tem dificuldade em levá-la a alguns lugares? – continuou.
      - Sim. – respondeu o garoto.
      - Quando você entra em algum lugar com ela e tem muitas pessoas, você sente que é a primeira coisa que reparam em você? – o velho levanta uma das sombrancelhas.
      - Sim. – o garoto lembra de algumas situações.
      - Você se sente diferente por ter que estar sempre com ela? – o velho parecia cauteloso agora.
      - Sim. – respondeu o menino, com certo ar de melancolia.
      - Essa foi a última pergunta. E pelo que vejo, suas respostas me levam a um resultado: você tem uma caixa! Meus parabéns!
      O garoto não disse nada, mas não parecia estar muito contente com o resultado.
      - Você não está feliz? – questionou o velho.
      - Acho que não sou muito de caixas. – o garoto respondeu em voz baixa.
      O velho fez uma pausa e encarou o menino com total indignação estampada no rosto.
      - Você está brincando!? Ter uma caixa é a melhor coisa que pode te acontecer! – exclama o velho, num tom tão animador e convincente que o garoto até sentiu que realmente poderia ser uma besteira não estar feliz por ter uma “caixa”.
      O garoto estava curioso de novo. A todo o momento o velho falava de sua caixa enorme, e o menino não conseguia parar de imaginar o que havia dentro dela.
      O velho continua.
      - É nela que você guarda o que você tem de melhor. Ela é parte de você, é o seu tesouro.
      O garoto meio sem jeito se arruma no assento como quem quer pedir algo. Toma fôlego e pergunta:
      - Senhor, o que tem na sua caixa?
      O velho se ajoelha em frente ao garoto, faz silêncio por 3 segundos. Num movimento repentino levanta muito empolgado e tira uma pequena chave do bolso do blazer surrado, dando pequenos saltos no lugar.
     - Achei que você nunca fosse perguntar! – disse enquanto abria os pequenos cadeados no tampão da sua caixa um a um. – Eu só posso abri-la, no momento em que você quiser ver o que tem dentro.
     Ele se posiciona em frente a enorme caixa, e num leve empurrão a porta se abre lentamente. Uma luz muio intensa sai da fresta aberta pelo empurrão e vai ficando cada vez mais forte a medida que continua a abrir. O garoto estava impressionado, seus olhos brilhavam. Quando o velho puxou o conteúdo da caixa, ele soltou o melhor sorriso que já havia dado. O velho puxou com orgulho o violoncelo mais bonito que seus olhos poderiam ver um dia. Talhado com perfeição, parecia ter sido feito por anjos. O velho se inclinou para o menino.
      - E tem mais. Você não quer saber o que tem na sua caixa? – disse estendendo a mão em direção ao peito do garoto e, de alguma forma, fez-se um feicho com um trinco no seu tórax, por cima das roupas.
      O velho abriu o trinco e do peito do garoto saiu uma tímida luz, que cresceu a medida que se abria a portinhola do peito. De dentro do peito o velho puxou um violino igualmente perfeito ao seu violoncelo. Depois puxou a varinha do violino e fez sinal para o garoto de que aquilo o pertencia. Fechou a portinhola, e comandou:
      -Toque.
      O garoto não pensou muito, não se importava se nunca havia segurado um violino antes, encostou a varinha nas cordas do instrumento e deixou soar o timbre mais bonito que já ouvira sair de um instrumento. Não mais bonito que o som produzido pelo violoncelo do velho acompanhando suas primeiras notas que saiam por instinto.
      Foi a sinfonia mais bonita que o mundo já ouviu. Tão bonita que no soar da última nota, o garoto abriu os olhos lentamente, despertando do sono e se aconchegando no colo da mãe

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Ação/Drama E Um Fundo De Comédia

É engraçado pensar no jeito que eu sei e não sei lidar com ela. Me sinto um hipócrita. Ela vive elogiando meu bom senso e, modéstia a parte, em alguns pontos ela realmente não tem do que reclamar... mas uma hora ou outra eu falho, como qualquer mortal. E quando eu falho, eu capricho. Então, no ato do erro me vem o pensamento: "É brother... ela vai fazer aquilo". E como se a vida me brindasse com a ironia de acertar em cheio após um erro idiota... eu estou certo! E em resposta eu devolvo um sorriso amarelo que (inteligentemente) abro só no profundo interior da minha mente.
Não sei muito bem como começa, só sei que já estou no meio quando eu tenho a impressão de sentir um frio repentino e nuvens negras deixando o céu num breu lá fora. A tormenta se aproxima. Ela me dá 4 ou 5 eternos segundos de silêncio que é pra que eu ocupe minha mente de culpa, me castigue, me pergunte tanto o ponto exato onde errei que acabo sem saber de mais nada e me prenda numa cena constrangedora onde eu sou virado do avesso, de tão errado. Depois disso, acontece. As sombrancelhas se abaixam apertando os olhos carregados de um sentimento indefinido, que ameaçadoramente me fitam. E num movimento perfeito, ensaiado, ela joga a cabeça junto com o olhar pra direita se certificando por um canto de olho se eu ainda estou acompanhando (perplexo) o seu movimento fatal. Se apoia pra levantar, deixando o braço fácil pra eu tentar puxa-la de volta, eu tento, em vão. E é nessa hora que ela tem a certeza de que ela me tem completamente vulnerável, no ápice da lástima de um homem. Ela puxa seu braço de modo violento (sem força, violento) pelos meus dedos que sabem que poderiam conter o movimento brusco com um pouco de força, mas não ousariam. Ela abaixa a cabeça, põe os lábios pra dentro, fecha as mãos pela metade e me dá aquelas costas cheias que, no caminhar, criam uma bolha de vácuo que suga todos os objetos do quarto junto com ela porta afora, me deixando nú, indefeso, atônito.
Eu nunca achei que sons fossem capazes de transmitir sarcasmo... até ouvir "A Bufada"."A Bufada" é um misto de desdém com inconformidade. Algo que te deixa constrangido e revoltado. Depois de me enfiar no buraco que cavou pra mim, ela solta "a bufada" pra ecoar no corredor e dilacerar qualquer dúvida que ainda me reste do tamanho do seu desapontamento com o meu ato infeliz (que a essa altura, não me lembro mais). Ela gosta de muitas coisas e, entre elas, está uma que sempre me intrigou: a cereja. Sempre achei que houvesse algum simbolismo, talvez pela minha mente doentia achar que a sua tradução pro inglês "cherry" tenha uma sonoridade sexy e que remeta ao pecado. Mas despois de testemunhar algumas aparições "d'A Bufada" acho que a cereja é uma menção ao seu imenso prazer em deixar um detalhe estético característico da sua natureza em tudo que ela faz. "A cereja do bolo". Eu vejo "A Bufada" como o golpe de misericórdia, o ato final do seu espetáculo escrito e dirigido por si mesma, criado para o fim de me fazer sentir. E ela consegue, com pleno êxito.
Somente com esse peso no peito eu posso me olhar de verdade. Ela foi covarde. Me despiu de propósito. Me forçou à auto-crítica. Me dividido somente em dois fazeres... refletir e corrigir. Mas essa explosão é tão efetiva quanto de baixo calão. Me pego numa vontade louca de dar mais carinho que antes. Numa cisma antiga comigo mesmo de que eu preciso aprender a me expressar na fala. De que eu preciso dizer mais o que sinto e menos o que penso. O amor não combina com educação. Dizer algo com o coração é dizer sem medo de parecer rude ou antecipar uma briga. É transportar pra fora aquelas coisas que geram um sorriso, um embrulho no estômago ou um choro. Tudo que eu quero nesse ponto é um abraço e um perdão. Mas, pasme, eu preciso adiar essa vontade. Afinal, só se passaram 5 minutos desde que ela deixou o quarto.

segunda-feira, 30 de maio de 2011

Trincheira Pessoal

Eu sou soldado de uma terra sem som e sem cor.
Meu grito de guerra ruge de um silêncio incolor.
Me armo de um pensamento a mais sobre o não visto.
Pulsando como arterial e venoso tem o amor e o ódio, num cálice misto.
Não vejo diferença de gênero, credo, classe ou cor em meus inimigos.
Só por juízo, dou o mesmo tratamento àqueles que chamo de amigos.
Levando a bandeira imponente do meu exército de um louco só.
Desbravei territórios onde tem neguinho que entra e num sobra nem o pó.
Já to ciente do caminho sangrento e gelado,
Que terei de atravessar pra ver de perto o que me foi reservado.
Me pediram pra ficar e olhar, desobedeci pra variar.
Desde muleque sou teimoso, não adianta, pergunta aos que ousaram duvidar.
Eu poderia morrer de frio, de terno e gravata no ar condicionado de um cubículo,
Mas é só olhar pela janela pra brotar uma idéia nova que assimile o comodismo ao ridículo.
Eu sou o guerreiro inquieto no universo de um cara calado.
A luta que eu venço todo dia é pra que ele se mantenha focado.

terça-feira, 5 de abril de 2011

O Lado Opaco Do Espelho.

Tudo que toma vida em meus rascunhos
Surge do ódio contido que enxarca meus punhos.
O olhar cansado das 5 da matina
Que revela o ego surrado pela prisão da rotina.
Mostra o lado despresível evidente de quem não consegue se ver errado
O homem que se prendeu calado, simplesmente por não ter argumentado ou questionado.
E com os valores formados, o seu discurso é tão vazio quanto seus erros passados:
Pro homem que paga o salário: "Sim senhor, obrigado, com licença, por favor..."
Pra mulher que divide a vida: "Cala a boca, sai daqui, você não entenderia meu amor..."
E a herança que se deixa é a atitude repassada.
A palavra proferida, doída, falada.
O garoto que cresce a cada dia, procura razão pra viver...
Educado desde menino pela falsa ilusão de escolher o que ser...
Escolheu os lápis de cor, o violão, a arte e o amor.
A vida cospe de volta só angústia, desilusão, ingratidão e dor.
Mudou pro dinheiro... a coisa mudou de figura.
Com a certeza de convenceu mais um otário, a vida se promete segura.
Se eu consigo me ver no topo do mundo, acenando com felicidade a esmo e sem cota.
É porque acredito, e não porque quero ver neguinho me acenando de volta.
Me fortaleço sozinho com fé total no que acredito.
Me entrego de corpo e alma pra minha prece de menino esquisito.
Se digo que vou sair de viagem, de um lugar onde ninguém sai.
Sempre tem dois lados: há quem despreza e duvida e quem se anima e se atrai.
Se me deseja o melhor, tem minha lealdade e o lugar reservado no busão.
Se me deseja o pior, te deixo minha compaixão, mas infelizmente não posso te prometer solidão.
Se brotasse um como você por segundo eu teria estoque pra um mês.
Meu lamento real é de que essa fábrica, que faz a idéia que você compra, tenha tanto freguês.

terça-feira, 22 de março de 2011

Acalma essa tempestade dentro de si.
Usa qualquer argumento que sopre um vento contra a tormenta insana.
Toma qualquer providência... se fecha, se afoga dentro de ti.
Mas se precisar de mim, por favor, não se aguenta...
Chama.

sábado, 19 de março de 2011

Presença

Não me importo de estar aqui.
Não quero ser o bem maior.
Só quero ser a gota de conforto.
A quase escassa idéia de que tudo está um caos, mas não pra sempre.
Que o seu passado nunca esteve nas suas ou em quaisquer outras mãos, mas que cada borrão que enxarca o quadro interminado do seu futuro vem da tinta do seu pincel.
Se precisar de abrigo a casa é sua. E se precisar escolher... fuja da indiferença, e não da dor.
O doloroso arde e cicatriza, o indiferente consome e leva, se acostuma, se aloja.
O amor é movido pela mesma força que o ódio.
O amor precisa do caos. Amor que não dói, que não afeta, que não muda... não existe.
Me atormenta a idéia de não ter o efeito que você precise. Mas me conforta a idéia de que eu tive a opção de não sofrer qualquer dor que não fosse minha, mas estou aqui. E não me importo.

quarta-feira, 9 de março de 2011

Folião do Ano.

O dia amanhece cinza, não temos planos pro jantar e as contas não estão em dia... mas isso pode esperar, porque hoje eu comprei um passaporte da alegria.
Relacionamentos se acabaram, memórias estão frescas e ninguém nunca mais deu trela... mas hoje minha escola desfila e eu terei olhos só pra ela.
As famílias estão mudando, os amigos estão sumindo e, em silêncio, entristeço... mas os bares estão cheios, bebo um pouco e logo esqueço.
Cidadão pede esmola, criança pede sonho e deputado pede aumento... Mas hoje eu vou atrás do trio elétrico e canto tão alto que arranco horas de um momento.

Finjo que estou feliz só por um dia ou três... eu mereço, afinal.
Pulo, danço e festejo... ora, é Carnaval!
Me distraio do que me machuca até a folia resolver tudo no final.
Acho que é daí que vem a impressão de que a quarta de cinzas é tão próxima do Natal.